MOLEQUE
Meu pai é gaúcho e minha mãe carioca. O encontro dos dois gerou quatro filhos e uma infância encantada na antiga zona rural do Rio de Janeiro. Embora estudasse em bons colégios na cidade, todo fim de semana tinha uma vida exclusivamente rural.
Entre os hábitos da família, provavelmente de origem do meu pai, tínhamos um porco em um chiqueiro. Ele ficava deitado e tranqüilo o dia inteiro. Quem cuidava dele era o seu Constâncio durante a semana, mas no fim de semana cabia aos meninos (eu e meu irmão Ricardo) levar o balde de “lavagem” e limpar os excrementos do animal.
Seu Constâncio o batizou Moleque, e eu divertia-me sozinho vendo ele, sem a menor cerimônia comer toda aquela comida fermentada, cascas de melancia, sabugo de milho, arroz e feijão e todas as sobras imagináveis. As orelhas balançavam, o rabinho ficava rodando e ele ia ficando cada dia mais gordo. Quando ia limpar suas fezes com uma enxada, ele ficava mordendo o cabo da ferramenta, fazendo-me rir muito.
Num dia azul de abril acordei cedo e vi um barril de água sendo aquecido com fogo, havia uma prancha de madeira grande, várias facas e tijelas debaixo de um pé de siriguela.
Como toda criança, vivia em um mundo meio próximo do sonho. Mas a realidade estava chegando e gritava muito. Os gritos de um porco ao saber da morte iminente são muito parecidos aos de um homem. Existe um filme chamado “Paraiba Mulher Macho”, com Claudio Marzo no papel de João Pessoa e mostra este triste paralelo. Mas voltemos aos meus oito anos.
Moleque era puxado pelas orelhas. Havia uma pontezinha sobre uma vala e meu pai gritou que eu fosse ajudar. Como eu o obedecia, ajudei a empurrar o desesperado Moleque sobre a ponte. Aquilo me levou ainda mais perto da cena. Seu traseiro estava cheio de fezes, ele tremia e seus gritos eram tão tristes que estão em meus ouvidos até hoje. Meu pai e seu Constâncio gritavam muito, era uma agitação enorme.
Moleque lutava com todas as suas forças para sobreviver. Foi aí que o seu Constâncio, mostrando uma habilidade que eu desconhecia usou de uma marreta e afundou o crânio do bichinho. O som do osso se quebrando também posso me lembrar até hoje.
Ele foi jogado no pranchão, e voltou a gritar, mas meu pai atingiu precisamente a carótida, no pescoço, e um jorro impressionante de sangue lavou o chão. “Bacia, bacia!” gritou meu pai, sendo prontamente atendido.
Moleque gritava, o sangue jorrava, a bacia enchia em um ritmo declinante, de finalização da vida. Olhava seus olhinhos que perdiam a expressão tantas vezes amiga, tornando-se fixos. O ritmo de gritos e jorros foi diminuindo e cessou. Já havia visto outros abates, e sendo eu filho de gaúcho, era proibido de demonstrar emoções. Para não chorar o que eu fiz? “Pai deixa o coração para eu estudar?”
Enquanto eles pelavam, carneavam, desossavam e organizavam os pedaços do que fora um ser sensciente, eu procurava no meio das fibras e câmaras do coração de Moleque o que sobrava da nossa amizade. E ele foi tão humilde que me mostrou, naquele dia azul de um ido abril, o caminho de minha profissão.